Griffith Foi um Mentiroso?

Como já escrevi no artigo “Não! Orson Welles Não Inventou Nada’’ não foi em Cidadão Kane que se inaugurou a profundidade de campo. Ao divulgar Cidadão Kane, o cineasta e seu diretor de fotografia, Gregg Toland, exaltaram a inovação da técnica de profundidade de campo, apelidada por Toland de “pan-focus”. 

Na revista Popular Photography, ele  afirmou sobre os impactos que seus métodos possibilitariam. Essa estratégia de marketing, típica de Welles, visava atrair a atenção da mídia e do público. No entanto, a história do cinema demonstra que essa técnica já havia sido explorada por cineastas soviéticos, japoneses e americanos – como o próprio Tolland já havia feito.

Embora ‘Cidadão Kane’ seja indiscutivelmente uma obra-prima, alguns dos mitos em torno de suas técnicas cinematográficas merecem ser revisitadas. Um exemplo notável é a famosa cena da infância de Kane na neve. Durante anos, acreditou-se que a profundidade de campo havia sido alcançada através de lentes grande angulares. No entanto, uma análise mais aprofundada revela que o plano do menino brincando foi, na verdade, uma retroprojeção sobre o cenário principal.

Da mesma forma, a cena do suicídio da esposa de Kane, que parece tão impactante e realista, é resultado de uma técnica de múltiplas exposições, já utilizada pela RKO em filmes anteriores, como ‘Levada da Breca’. O vidro que se quebra e o frasco que rola foram filmados separadamente e combinados em pós-produção, demonstrando a criatividade e o domínio técnico de Orson Welles

Essas são apenas algumas das informações que ainda hoje, são escritas em livros, textos e em podcasts, mas que não são verdadeiras. 

E a partir do momento que temos à disposição historiadores, professores e teóricos prestando a reavaliar o papel de certas figuras na história do cinema, uma discussão mais profunda é necessária se fazer.

Um dos nomes que mais me desperta interesse sob esse tema é D. W. Griffith. Porque talvez ele não seja tão fundador do “estilo cinematográfico” assim como se definiu durante muitas décadas. Algumas dessas ideias perderam mais força do que outras, mas ainda é comum encontrar citações que o definem como “pai do cinema norte americano”.
David Bordwell defende que nem tão influente assim o diretor foi, visto que seu estilo não foi copiado por outros:

“…Griffith desenvolveu certas tendências que já estavam presentes, levando-as a um novo nível de expressão. Além disso, suas técnicas mais originais não foram adotadas por outros, então, em alguns aspectos, outros diretores tiveram mais influência na prática de edição padrão. Como indivíduo, Griffith continua importante, mas ele provavelmente não é o Grande Inovador que as pessoas o consideravam.”

E eu, compreensível que a frase anterior gera discordâncias, visto que o diretor é colocado como uma das figuras mais influentes no cinema. A grande questão aqui é que muito do que se fala sobre suas “invenções” ou até mesmo “popularização” que não são verdadeiras ou são exageradas.

É quase impossível não afirmar que um dos maiores responsáveis por essa ideia ter sido bem difundida é graças ao próprio Griffith. Porque, da mesma forma como Tolland e Welles, ele soube construir um imaginário popular.

Nos primórdios do cinema, a relação com os atores, realizadores e equipe técnica era diferente. A maioria das empresas de filmes não creditavam a participação dos atores nas obras. Isso acontecia porque existia um temor de alguns nomes ficarem famosos e exigirem um alto salário. Também era uma forma de controlá-los e evitar que pudessem seguir carreira independente. 

É claro que alguns profissionais (majoritariamente oriundos do teatro) não queriam ser vinculados àquilo que era considerado como algo menor e sem prestígio. E dessa forma podiam manter a identidade assegurada. Sendo assim, era um mistério quem estava por trás dos primeiros personagens que apareciam na tela grande.

Sob toda essa esfera, D. W. Griffith tomou a decisão de deixar a Biograph em 1913 e em seguida fundou a Mutual Film Corporation, onde produziu obras como O Nascimento de Uma Nação (1915) e Intolerância (1916). Essa iniciativa tinha por objetivo conseguir mais controle criativo para projetos mais ambiciosos e prestígio para a própria carreira. E isso só seria possível através de uma coisa: publicidade.

Uma das táticas mais marcantes de Griffith era a realização de eventos grandiosos e chamativos para promover seus lançamentos. Ele organizava estreias mundiais em grandes teatros, com tapetes vermelhos, orquestras e a presença de celebridades. Essas ocasiões eram amplamente divulgadas na imprensa, gerando grande expectativa e curiosidade em torno de seus filmes.

O diretor também investia em pôsteres e cartazes bem elaborados, que eram distribuídos em cinemas e outros locais públicos. Esses materiais visuais eram cuidadosamente desenhados para chamar a atenção do público e despertar o interesse por suas produções. É claro, sem deixar de valorizar o seu nome que, na maioria dos casos, estava mais em destaque do que o nome do ator

Além disso, ele concedeu diversas entrevistas falando das pretensões artísticas e temáticas de seus filmes. Uma das estratégias mais marcantes foi atribuir a si a direção de centenas de curtas-metragens produzidos entre 1908 e 1913, uma afirmação publicada no jornal New York Dramatic Mirror. É importante ressaltar que, na época, era comum que os filmes não creditassem individualmente os diretores. Sem dúvida, Griffith dirigiu muitos desses curtas, e obras como ‘The Lonely Villa’ (1909) e ‘The Lonedale Operator’ (1911) demonstram sua habilidade narrativa. No entanto, não existe um número exato de quais filmes desse período foram feitos por Griffith. Além do mais, o diretor disse ser o responsável pelo uso de outras técnicas narrativas como a montagem paralela e o close.

 

Uma das entrevistas de Griffith.

É inegável que Griffith trouxe contribuições para a linguagem cinematográfica e isso o tornou uma figura popular. Mas é preciso ressaltar que esse fato se deu a partir da repercussão que seus filmes causaram no público. Lillian Gish cita um acontecimento após uma exibição de The Lonedale Operator:

“As pessoas na exibição ficaram muito chateadas. Elas desceram e disseram: ‘O público não paga pela cabeça, nem pelos braços, nem pelos ombros do ator. Eles querem o corpo inteiro…’ Griffith ficou bem perto delas e disse: ‘Vocês conseguem ver meus pés?’ Quando elas disseram que não, ele respondeu: ‘É isso que estou fazendo. Estou usando o que os olhos podem ver.’ ”

Mas outros realizaram experiências bem sucedidas antes do diretor. George Albert Smith, por exemplo, utilizava closes de forma eficaz em filmes como ‘As Seen Through a Telescope’ (1900) e ‘The Sick Kitten’ (1903). A diferença é que foi Griffith quem elevou o close-up à categoria mais rebuscada de narrativa, empregando-o para criar momentos de intensa emoção e intimidade com o espectador, como se vê em ‘A Change of Heart’ (1909). Combinado a sua habilidade em dirigir atores, o resultado era inegavelmente impactante. 

Ao analisar a montagem paralela e sua relação com a criação do suspense, deparamo-nos com uma questão intrigante. Ruy Gardnier, em seu catálogo sobre Hitchcock, atribui a D.W. Griffith a invenção dessa técnica:

“…trata-se apenas de reter-nos o fôlego, e para isso todos os meios são bons para Hitchcock, mesmo a volta ao velho suspense da montagem paralela inventada por Griffith em Intolerância (1916)”

Contudo, a afirmação de Gardnier é questionável. A montagem paralela já havia sido experimentada por Louis J. Gasnier em “Le Cheval Emballé“, anterior a “Intolerância”. Essa descoberta nos leva a repensar a atribuição da paternidade dessa técnica. Ademais, ao considerarmos a criação do suspense como um conjunto de elementos que vão além da montagem paralela, percebemos que outros cineastas, como Lois Weber e Phillips Smalley, também desempenharam um papel fundamental nesse processo. Portanto, reduzir a criação do suspense à figura de um único cineasta, como Griffith, é uma simplificação excessiva.”

É importante frisar que o roteiro de “Suspense” (1913) é muito semelhante ao “The Lonely Villa” (do próprio Griffith, 1909). Porém, o curta-metragem de Weber e Smalley acrescenta alguns pontos curiosos que tornam a obra mais desafiadora: colocar o invasor para rondar a casa e observar a jovem sem que a mesma perceba; impor dificuldade no caminho do marido que está desesperado para salvar a esposa, usar duas linhas de ação dentro do quadro para efeitos de suspense (algo que Hitchcock se aproveitaria), para construir uma espécie de “final girl” – algo que seria recorrente no gênero de suspense e terror –  e usar a tela dividida para efeitos de tensão. 

A história do cinema é repleta de lacunas, e “A Change Of Heart”(1909) é uma dessas perdas lamentadas. Citado por nomes como Richard Schickel e Kristin Thompson como um dos primeiros filmes de Griffith a explorar o close de maneira eficaz, este trabalho se torna ainda mais intrigante por sua indisponibilidade online, impedindo uma análise mais aprofundada de sua importância.

A maestria de D.W. Griffith na direção e na mise-en-scène é incontestável. Suas contribuições para o cinema foram tão profundas que o tornaram uma figura central na história da sétima arte.  Contudo, a genialidade artística não isenta um criador das responsabilidades éticas e controvérsias em suas obras. A história do cinema, como qualquer outra, é escrita por vencedores, e nem sempre aqueles que pavimentaram o caminho recebem o crédito que merecem.


Fontes:

XAVIER, Ismail. D. W. Griffith, o nascimento de um cinema.
GARDNIER, Ruy. Hitchock
VALE, Marco. 100 Anos de uma forma de contar histórias.
David Bordwell: https://www.davidbordwell.net/blog/2008/08/29/lucky-13/

 

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