Cidadão Kane (1941) é uma obra histórica e unânime no tom de excelência. Uma das razões é pela forma como o diretor (Orson Welles) e o diretor de fotografia (Gregg Toland) executaram a câmera baixa, teto do cenário à vista, planos sequências mais complexos e o principal questionamento deste texto: o deep focus (que o termo mais correto deveria ser depth of field).

Mas existe uma crença entre os cinéfilos e parte da crítica, que acreditam que a dupla citada foi a responsável por inaugurar as técnicas usadas no filme.

Neste sentido há um grande problema. É uma informação falsa.

No cinema existem muitas mentiras contadas que nem sempre são difundidas por malícia. Algumas estão expostas até mesmo em livros conhecidos de história e linguagem fílmica. Em A History of Narrative Film (4th edition, 2004) de David A. Cook’s é escrito: “…the creative genius of Orson Welles and Gregg Toland, restored the cinema’s physical capacity for deep focus…”. (p. 385)

Em uma tradução literal seria algo assim: “gênios criativos de Orson Welles e Gregg Toland, restauraram a capacidade física do cinema para um foco profundo…”

O deep focus mencionado por Cook é a técnica que permite todos os objetos estarem em foco no plano, seja qual for a distância que estão. Contudo, é importante lembrar, não devemos confundir com deep field (profundidade de campo). Essa última, engloba a encenação em profundidade independentemente de estarem focados ou não.

A autora Christine Etherington-Wright no livro Understanding Film Theory, consegue se sair melhor que os anteriores ao perceber o uso da técnica feita precedentemente por Jean Renoir. Porém, essa infeliz tentativa de defesa também se apresenta como falsa. Existe verdade em afirmar que Renoir trabalhou antes em A Regra do Jogo (The Rules of the Game, 1939) algumas das técnicas conhecidas pela dupla, mas o francês tampouco pode ser visto como uma figura que impulsionou essa linguagem.

Voltando aos equívocos, até mesmo alguns (sim, no plural) críticos brasileiros de longa data acreditam em algum pioneirismo do filme. Uma colega (a qual não colocarei o nome para não gerar polêmica ou constrangê-la) escreve que “…Gregg Toland, o responsável pelas icônicas câmeras baixas e pela então inédita profundidade de campo, que se provaria revolucionária…”

De todo modo, essas citações repassam um fator histórico incorreto. Nada do que foi usado no filme foi criado por qualquer um dos envolvidos. Essa ideia errônea é repetida incontáveis vezes e mencionadas em livros razoavelmente respeitados na academia.  O jornalista e escritor francês Georges Sadoul dizia que a obra era “uma enciclopédia de técnicas velhas”

Isso posto, vamos entender melhor do que já havia sido trabalhado antes.

Planos sequência com complicados movimentos de câmera, iluminação que reforça a profundidade de campo, uso da objetiva grande-angular e sets de filmagem com teto aparente são técnicas utilizadas nos filmes Noite Nupcial (Wedding Night 1934), Tornamos a Viver (We Live Again 1934) e No Tempo das Diligências (Stagecoach 1939).

No Tempo das Diligências (1939)

Citar No Tempo das Diligências é curioso porque, como David Bordwell afirma no livro Film Art: An Introduction (página 369, quarta edição), foi o filme que Welles assistiu repetidas vezes para estudar linguagem cinematográfica. Uma vez que o jovem promissor ainda não tinha uma experiência em longa metragem, era natural que o mesmo repetisse algo que viu enquanto aprendia sobre a sétima arte. Coincidência ou não, é a obra que apresenta técnicas, de forma um pouco mais tímida, utilizadas em Kane.

Sobre o deep focus, é dito repetidas vezes que Welles e Toland criaram a técnicas para o clássico de 1941. O que também é uma informação incorreta, pois alguns diretores trabalharam a linguagem antes deles dois. William Wyler, John Ford, Alfred Hitchcock, Kenji Mizoguchi e Sadao Yamanaka são alguns cineastas que manusearam o foco profundo antes da dupla mencionada.

É curioso pensar que essa confusão nem sempre advém de quem está estudando a história, às vezes é dos envolvidos. Nesse caso trata-se, acredite ou não, do próprio Gregg Toland.

Da mesma forma como a auto proclamada invenção da montagem paralela e dos primeiros planos elevou a posição de Griffith, o fotógrafo se aproveitou da publicidade em torno do filme para aumentar a própria contribuição à obra. Durante o lançamento americano de Kane, o ele afirmou que sua técnica quebrava regras. Na ocasião, chamou o deep focus de “pan-focus”. O que não faz sentido algum, pois se observarmos trabalhos anteriores, notamos a presença dessas ferramentas. Repare abaixo uma cena de Beco sem Saída (Dead End, 1937) de William Wyler  e com fotografia do Gregg Toland.

Beco sem Saída (1937)
Beco sem Saída (1937)

Isso é mais antigo do que se pensa. Desde os filmes mudos já era possível perceber o uso da prática. Observe a imagem a seguir, vemos um homem que acaba de falecer na cama. Os filhos estão em outro cômodo da casa sem saber do acontecimento, a não ser pela pequena criança em pé na entrada.

Ingeborg Holm (1913)
Ingeborg Holm (1913)

Na cena, não há uma montagem complexa para reforçar a melancolia do momento. Por alguns segundos, Victor Sjöström (Suécia) deixa a sequência avançar com informações em primeiro e segundo plano para construir o drama na situação. Confira o filme AQUI (a partir de 13:04)

Outra cena em que podemos notar uma composição que se utiliza do deep focus é no filme The Last Laugh (F. W. Murnau, 1924). Você pode assistir a cena clicando AQUI (fica em 5:05)

The Last Laugh (1924)
The Last Laugh (1924)

Confira outros exemplos de deep focus antes de Welles

Fogo de Outono (1936)
Fogo de Outono (1936)
A Cruz dos Anos (1937)
A Cruz dos Anos (1937)

Sendo assim, é um erro inquestionável atribuir qualquer tipo de pioneirismo a Orson Welles ou a Gregg Toland, uma vez que outros realizadores haviam utilizado essas técnicas. De forma alguma, isso remove os méritos de Cidadão Kane. O filme é brilhante pela forma narrativa que aplicou tais métodos já existentes. E tanto o diretor quanto o fotógrafo são nomes que sempre vão ser lembrados não somente pela obra, mas também por usarem esse artifício.

André Bazin comenta, por exemplo, que o uso da profundidade de campo em Cidadão Kane concebia três efeitos. O primeiro era possibilitar ao espectador um contato mais próximo com a cena. O segundo seria a exigência participativa maior da atenção do espectador. E, por último, gerar ambivalência em cenas com mais de uma informação. Uma vez que o olhar da audiência não é dirigido, o público é livre para o enquadramento e montar a própria interpretação (Bazin adorava isso).

Mas não podemos nos esquecer dos outros que também foram importantes.

Abaixo deixo um vídeo bem bacana sobre a fotografia do filme.


Fontes:
Abc Cine: https://bit.ly/37XRIBT
David A. Cook’s A History of Narrative Film: https://bit.ly/3qVJKBZ
David Bordwell Film Art: An Introduction: https://bit.ly/3oUMOMV
Fredrik on Film: https://bit.ly/3mbVxZj

 

A FOTOGRAFIA DE CIDADÃO KANE

 

 

 

Estudou cinema na escola Cinema Nosso e é formado em Estudos de Mídia. Roteirista, futuro diretor e colecionar de HQ. É editor chefe do Canal Claquete. Odeia arrogância no cinema.