Quando um gênero começa a saturar – por mais que ainda dê lucro – dois cenários podem ocorrer quando se trata de novos conteúdos: o surgimento de produções repetitivas e desgastadas, que usam e abusam de fórmulas pré-determinadas, ou de obras que, de forma certeira, inovam dentro de seus gêneros. Felizmente, com The Boys (2019), o que ocorre é o segundo cenário.
Baseada na HQ homônima publicada pela Dynamite Entertainment entre 2006 e 2008, criada pelo escritor Garth Ennis (autor de Preacher, mestre dos temas polêmicos) e pelo ilustrador Darick Robertson (Transmetropolitan), a série faz jus ao material original e traz uma subversão completa do gênero de super-heróis, colocando-os num mundo realista muito próximo ao nosso – também controlado pela propaganda capitalista, aqui toda baseada na imagem dos heróis – de forma que, mais do que apenas salvadores da pátria, estes também são celebridades de um mercado que movimenta bilhões anualmente.
Tal estrelismo torna comum situações de assédio físico e moral, abuso de poder e falta de limites por parte dos supers, que se comportam como deuses inconsequentes do Olimpo, gerando destruição e inúmeras baixas civis como efeito colateral de suas ações, tudo acobertado pelas megacorporações que administram as carreiras e a imagem desses imaculados e supostamente benevolentes representantes da justiça.
Cansado dessa impunidade, está Billy Butcher (o bruto e carismático Karl Urban, que encarna perfeitamente o cinismo da obra de Ennis), que surge na vida do desiludido Hughie (Jack Quaid, filho do ator Dennis Quaid com a atriz Meg Ryan) para mostrar a realidade por trás desse mundo super heroico de fachada, propondo a ele uma chance de vingança após uma trágica perda pessoal relacionada aos supers, tudo com o auxílio de sua fiel equipe clandestina, os tais “Rapazes” do título, composta por Leite Materno (Laz Alonso), Francês (Tomer Kapon) e a sanguinária Fêmea (Karen Fukuhara). É pelos olhos de Hughie que somos guiados, de início, pelo mundo super heroico, e descobrimos o quão caótica pode ser uma realidade onde paladinos de capa e collant voam por aí.
Um dos pontos altos dessa viagem por um mundo de falsos heróis vem em determinada cena, onde vemos um grupo de terapia voltado às vítimas colaterais das ações dos vigilantes. Ali, encontramos sujeitos que sofreram desde as formas mais comuns de consequências, como a perda de entes queridos atingidos por escombros resultantes das batalhas dos vigilantes contra o crime, até as formas mais inesperadas, como no relato de um membro do grupo que se feriu de forma nada convencional ao se relacionar sexualmente com uma heroína que possuía poderes de gelo (sim).
Esse tipo de situação corriqueira nos insere de forma crível e eficaz dentro daquele mundo, apresentando consequências mais plausíveis e variadas da existência de super-humanos atuantes numa sociedade real – onde tal presença reverberaria das mais variadas formas e afetaria todo o escopo social direta e indiretamente.
Toda essa desconstrução do gênero chega no melhor momento possível. Vivemos uma época onde 4 das 10 maiores bilheterias de cinema de todos os tempos (sem ajustes de inflação) pertencem a filmes de super-heróis. Talvez por isso, só agora uma adaptação de The Boys tenha conseguido finalmente sair do papel: a ideia era, inicialmente, lançar um filme baseado na HQ que nunca chegou a acontecer, talvez pela dificuldade em se adaptar todo o conteúdo gráfico e moral do material base para um filme, numa época em que o gênero não era tão popular entre o grande público e isso não refletiria nos resultados de bilheteria. O que hoje, é claro, é uma realidade completamente diferente, tendo a série caído como uma luva satírica num momento muito oportuno: quando o gênero começa a dar seus primeiros sinais de desgaste e precisa justamente se reinventar.
Boa parte do crédito por The Boys ter sido finalmente adaptada, deve-se à produção de Seth Rogen e Evan Goldberg, dupla que parece sempre disposta a trazer ao mundo adaptações de obras cultuadas pela comunidade geek (tendo sido também produtores de Preacher) algo que reflete diretamente o seu próprio carinho pelo meio. Em diversos momentos da série, pode ser sentida uma carga humorística que remete aos stoner movies da dupla, com situações bizarras e surreais acontecendo a todo momento, algo bastante plausível se considerarmos a existência de seres superpoderosos num mundo realista.
A glamourização do que é ser um super-herói é totalmente exposta aqui como uma grande mentira, nada mais que uma fachada, mostrando o principal panteão de campeões – aqui chamados de Os Sete – como contratados de uma megacorporação, a Vought, que devem cumprir uma agenda em prol dos interesses do suposto ideal americano, com a movimentação de bilhões de dólares através da venda de produtos licenciados como bonecos, roupas, filmes e participações oportunas em eventos sociais e religiosos, deixando o combate ao crime em segundo plano apenas como forma de autopromoção e ponto de partida para a monetização.
Essa versão própria da Liga da Justiça é perfeita para satirizar o que é necessário: o Capitão Pátria (Antony Starr), por exemplo – o equivalente ao Superman deste universo – nos mostra que, por traz de toda a sua pose inabalável e indestrutível, secretamente não passa de um garotinho solitário, mimado e inseguro, sedento por aprovação, que pensa que pode fazer o que bem entender, o que o torna tremendamente volátil e perigoso e o faz protagonizar alguns dos momentos mais revoltantes e marcantes desta primeira temporada.
Outro bom desenvolvimento de personagem fica por conta de Profundo (Chace Crawford), a sátira do Aquaman, tendo sua utilidade no grupo questionada em forma das já clássicas piadas sobre falar com peixes, o que abala sua autoconfiança num interessante arco que o faz passar de assediador à assediado. Completam o panteão de heróis questionáveis: o velocista Trem Bala (Jessie T. Usher), a guerreira amazona alcoólatra Rainha Maeve (Dominique McElligott), Translúcido (Alex Hassell), Black Noir (Nathan Mitchell) – o pouquíssimo explorado “Batman” da equipe, que pode vir a render ótimos momentos satíricos nas próximas temporadas, sendo o Homem-Morcego um prato cheio para sátiras – e Luz Estrela (Erin Moriarty), a novata do grupo que também serve como pêndulo moral ao espectador, colocando em pauta um bem vindo debate sobre mantermos nossa essência ou nos vendermos para alcançarmos nossos objetivos.
Com uma primeira temporada que aborda temas polêmicos de formas críveis em meio à temática fantástica de super-heróis, The Boys acerta em cheio ao desconstruir com perspicácia um gênero meteórico que necessita de renovação, apresentando debates sempre pertinentes – de assédio a racismo, de capitalismo a religião e manipulação de massas – principalmente em tempos políticos tão nebulosos, onde falsos heróis idolatrados como salvadores da pátria são movidos por puro oportunismo e cifrões.
________
Escute nosso PODCAST no: Spotify | Google Podcasts | Apple Podcasts | Android | RSS
Entre para o nosso grupo no facebook AQUI
Curta nossa página AQUI
Siga-nos no Instagram: @sitecanalclaquete
.
.
.
Como TARANTINO filma uma cena?