Nos últimos anos, os filmes da Marvel varreram mercados cinematográficos mundo a fora. A China não foi exceção. Uma parcela expressiva da renda em bilheterias dos filmes da “Casa das Ideias” vem do mercado chinês. Quando se soma isto com a crescente demanda por representatividade que tomou Hollywood nos últimos anos, e o imenso sucesso de Pantera Negra, compreende-se bem o movimento que levou a aprovação do primeiro filme de herói com um protagonista asiático.

Shang-Chi se revela um filme meticulosamente construído para cumprir a dupla tarefa de agradar o público asiático dos EUA e consolidar a posição da Marvel no mercado chinês. Para isso, o filme se apoia em um pastiche da experiência asiática nos EUA e da cultura chinesa, exibindo todos os pontos típicos – como se preenchesse uma cartela de bingo. Do lado norte-americano: a família rígida, os jovens sino-americanos que buscam compreender seu lugar entre dois países, a vovó, São Francisco – cidade californiana conhecida por sua Chinatown. Do lado chinês: a importância da família, a existência de uma tradição nacional milenar, Macau e seus casinos, a vila perdida, o kung-fu, os dragões. Apesar do filme passar por todos estes tópicos, nenhum deles é central em sua construção.

Hesito até mesmo em chamar Shang-Chi de um filme de herói, já que o protagonista do longa não é um. Apesar de carismático, Shang-Chi (Simu Liu) não tem um arco, um desafio interno ou externo para superar. Ele não busca compreender seu lugar no mundo, tampouco realizar a síntese das diferenças de seus pais, por exemplo. Ele apenas se move de uma cena para a outra de acordo com as ordens do roteiro.

Isso vale também para o antagonista Xu Wenwu (Tony Leung), que não faz rigorosamente nada no filme, e que dificilmente poderia ser chamado de vilão. No final ele acaba substituído por um imenso dragão de CGI, uma decisão constrangedora em um filme que tem um dos maiores atores da China no elenco.

O mesmo acontece com o kung-fu, apropriado de maneira superficial e sem destaque. A superficialidade fica por conta das coreografias inexpressivas. Em filmes como os de King Hu ou Liu Chia-Liang (e tantos outros) o kung-fu é uma forma de expressão: através dos gestos, os personagens nos mostram quem eles são e o que importa para eles. Em Shang-Chi é praticamente impossível diferenciar um personagem do outro neste quesito: quase todos lutam de maneira igualmente genérica. As exceções são os pais Xu Wenwu (Tony Leung) e Li (Fala Chen), o primeiro com movimento mais brutais e direitos, e a segunda com movimentos elegantes e ritmados, e que nos encontram uma das poucas boas cenas do longa em seu primeiro encontro.

A falta de destaque fica na conta do tributo que a obra paga por pertencer ao famoso “Universo Cinematográfico da Marvel”: as piadas, que interrompem os momentos dramáticos da trama e – mais grave – as lutas. Algumas vezes a câmera foge da coreografia para fazer uma piada, uma decisão perturbadora em um filme que se propunha a ter elementos de kung-fu.

Tudo isso se combina para fazer de Shang-Chi um filme desapontador, que não acredita em suas próprias premissas. Um filme incapaz de construir um arco para seu herói, encerrando sua jornada com a promessa/ameaça de sua eterna repetição a partir da incorporação do protagonista nos próximos filmes da franquia.

 

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