Mais uma vez venho falar com você sobre questões que permeiam a história do cinema e são escritas de maneira duvidosa. Talvez este seja o texto que mais transmita a sensação de arrogância, pois vou, em algum momento, questionar trechos do André Bazin e Cesare Zavattini (humildemente, ok?)


É imprescindível, antes de mais nada, entender o movimento neorrealista na Itália; pois a definição do termo é a base para se questionar se certos filmes podem ou não pertencer ao conjunto. 

Uma boa definição está no site do BFI, em um trecho (em uma tradução livre) diz algo assim:

“ O neorrealismo foi acima de tudo uma reação às produções dos anos fascistas, influenciadas por Hollywood, destinadas aos estúdios (os chamados “filmes do telefone branco”). Seus proponentes – Rossellini, Vittorio De Sica , Luchino Visconti , Giuseppe De Santis e Carlo Lizzani entre outros – estavam determinados a levar suas câmeras às ruas, para refletir a ‘verdadeira Itália’, que durante anos estivera ausente das telas do cinema italiano. “


O mais importante dessa definição é entender o movimento como uma resposta aos anos do poder de Benito Mussolini em que a “verdadeira Itália” seria mostrada em histórias de pessoas comuns e da classe trabalhadora. E mesmo que pareça um absurdo dizer isso, não significa que seja um movimento esquerda (embora quando se discuta questões trabalhistas dificilmente há um distanciamento desse espectro político). Entender a partir da definição é importante para destrinchar outros pontos.

Pois alguns vão tentar encaixar todos os filmes italianos do pós-guerra dentro do neorrealismo. O que seria um erro quando se tem em vista a definição do movimento. Porque nem todas as obras feitas após a libertação italiana podem ser definidas assim.

Europe ‘51, que foi lançado em 1952, é sobre uma mulher rica que decide ajudar os oprimidos da sociedade após a morte de seu filho. Não se trata de uma história sobre uma operária. Viagem à Itália, realizado em 1954, é sobre um casal inglês rico em férias na Itália no momento em que o casamento se desintegra.

Bazin dizia que Viagem à Itália era uma obra neorrealista no livro “André Bazin and Italian Neorealism”. O que é um erro (na verdade Bazin já errou algumas vezes), pois também não é um olhar sobre os pobres ou que visava revelar questões do país após anos de sofrimento. Pelo contrário, é uma história de amor entre dois indivíduos.

Na verdade, uma porcentagem muito pequena de filmes italianos de 1945 e até o início dos anos 1950 poderia ser considerada neorrealista. Isso não é um demérito para o movimento. Pelo contrário, talvez seja o principal período (se não, um dos) em que a pobreza e pessoas que buscavam encontrar uma forma de sobrevivência no trabalho foram representados de uma forma tão cuidadosa e sensível.

Além disso, a própria forma de “capturar a realidade” através do cinema pode ser questionada. Muitos filmes são usados para ilustrar a questão de retratar a realidade, Ladrões de Bicicleta é um exemplo constante. Porém é uma história extremamente sentimentalista que foi filmada, em algumas partes, em estúdio. A chuva, por exemplo, não foi natural e sim manipulada.

É uma história com carga melodramática, usando dispositivos cinematográficos simples para guiar o espectador através dela. Se por um lado não há alternância de planos complexos (plongée ou zenital), a música é extremamente premeditada. Funciona como um mecanismo para gerar a emoção esperada no espectador em momentos específicos.

Cesare Zavattini, que foi um dos maiores roteiristas do período, afirmava que seus filmes eram o oposto do cinema americano. Ele acreditava que “a posição americana é a antítese da nossa”. Mas manipulação de sentimento e cenas feitas em estúdio não poderiam ser vistas como algo hollywoodiano? Eu acredito que sim. É óbvio que O Tesouro de Sierra Madre (1948) e Festim Diabólico (1948) são filmes americanos totalmente diferentes de Ladrões de Bicicleta (1948). No entanto, Os Melhores Anos de Nossa Vida (1946) também tinha essa proposta defendida por Zavattini (guardadas as devidas proporções).

Eclettico uomo di cultura emiliano, attivo a Parma nella prima metà del 900
Cesare Zavattini


Roma, Cidade Aberta (1945), por exemplo, é totalmente distinto de Alma em Suplício (1945). Mas não tão diferente de Também Somos Seres Humanos (1945), uma vez que o filme de Rossellini se utilizava de elementos de espionagem e do estilo americano em obras da década de 30.


“Capturar a verdade” não quer dizer necessariamente retratar pobreza, cotidiano ou pessoas comuns. Mesmo que fosse um pré requisito, O Órfão do Mar (1948) de Henry King, feito nos EUA, poderia ser citado. Pois também conta a história de um indivíduo que tem uma vida simples de pescador.

O próprio uso de pessoas comuns já estava presente nos filmes da URSS. Eles buscavam indivíduos que não eram atores, mas tinham o “tipo” ideal para representar os personagens na história. E Ladrões de Bicicleta não foi feito nos mesmos moldes pois alguns participantes do filmes eram atores amadores. Mesmo a produção não foi feita de forma improvisada ou sem compromisso financeiro. O filme custou estimadamente $ 133.000. Valor semelhante ao usado em Hollywood.

Retratar pessoas comuns da classe trabalhadora em ambientes mais próximos do real não é nenhuma novidade para a história do cinema. Desde os filmes mudos podemos notar essas características nas obras. E isso não diminui a beleza contida no neorrealismo italiano.

 

Mas se tudo for chamado de neorrealismo, nada é neorrealismo.

FONTES:

https://www2.bfi.org.uk/news-opinion/news-bfi/lists/10-great-italian-neorealist-films
https://fredrikonfilm.blogspot.com/2018/11/talking-about-neorealism.html
http://www.f.waseda.jp/norm/Realism11/Zavattini.pdf (sexto parágrafo)

 

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QUEM DESTRUIU O SUPERMAN ?

Estudou cinema na escola Cinema Nosso e é formado em Estudos de Mídia. Roteirista, futuro diretor e colecionar de HQ. É editor chefe do Canal Claquete. Odeia arrogância no cinema.