Qual o valor da memória? Quanto vale um registro histórico?
A definição da importância, histórica, artística ou recreativa, de algo que se quer documentar parte do subjetivo e talvez seja irrelevante, visto que existem boas e más obras que falam sobre assuntos macros (guerras ou escândalos de corrupção), e boas e más obras que falam sobre assuntos pessoais e desconhecidos (a vida de um pai ou apicultores da Macedônia do Norte).
No caso de Inseparáveis, a diretora e roteirista María Álvarez prefere o ignorado. O filme mostra o cotidiano e memórias das irmãs gêmeas Isabel e Amelia Cavallini (carinhosamente apelidadas de Ynga e Coca), duas nonagenárias solteiras, sem filhos e que outrora experimentaram o sucesso artístico como um duo de pianistas, apresentando-se, inclusive no exterior, em longas temporadas e conquistando elogios de diversos músicos consagrados.
Na relação entre as duas protagonistas há momentos de grosseria e impaciência. Ué, mas “quem nunca”? Dinâmica entre irmãos é assim mesmo, certo? Mais importante que isso, a captura de pequenos gestos de afeto, como uma arrumar o cabelo da outra enquanto sorri durante alguns segundos, evidencia o amor que há ali.
As duas estão e estiveram sempre juntas, da forma que sugere o título e outros símbolos visuais, como os adesivos de duas estrelas sobrepostas em uma vitrine.
No pequeno apartamento, disputam espaço obras de arte, estátuas de santos, quadros e fotografias, além de um grande e raro piano de cauda que provavelmente vale mais do que o imóvel em que habitam as irmãs. A direção capta bem a bagunça de objetos, tão abarrotados e acumulados como a mente das duas.
Uma sensação inicial de cheiro de mofo e desordem é substituída pelo sentimento final de aconchego. Parte disso vem de escolhas técnicas, como preferir a luz âmbar confortável, sem a artificialidade de equipamentos de iluminação que reportagens televisivas normalmente utilizam. O impacto visual é sentido, por exemplo, quando outros ambientes são explorados, como as refeições no fast food.
A intimidade é conquistada pela cineasta e transferida para o público. Aprende-se que bonecas de brinquedo têm importância e não deixa de ser doce acompanhá-las mimando os bebês-fake (um pouco assustadores, inclusive).
No entanto, em um momento de dor das irmãs, pra quê a câmera persegue ferozmente aquele sofrimento? Dado o tom do documentário, o poder sugestão talvez fosse mais adequado, até porque o fato de ter ido com a câmera trêmula atrás do que ocorreu nada explica. Da mesma forma, em um depoimento emocionado, a câmera faz questão de corrigir o quadro para melhor enquadrar o rosto da personagem. Qual o limite do invasivo e da exploração da dor?
Talvez por uma questão de reparação com o apagamento feito, Álvarez registra a história das duas senhoras em todos os momentos que julgou relevante. Ao mesmo tempo em que o desmonte da vida é inevitável e as assinaturas no piano serão lixadas e apagadas, as Irmãs Cavallini ficarão gravadas na obra da diretora. E quem sabe na memória de quem a assiste.
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