A fantasia explícita dos conto de fadas, muito presente em animações de
longas metragens da Disney, combina muito bem com a estética e narrativa de
Cidade de Gelo, filme de 2020, realizado pelo diretor estreante Michael Lockshin,
que estreou no último dia 16 na plataforma de streaming Netflix, como primeiro filme
russo disponível entre os originais da plataforma.
Temos aqui toda uma dinâmica que pode ser encontrada em filmes de animação, e parte disso se deve à estrutura melodramática presente na obra, associada, de certa forma, ao discurso de luta de classes, embora ambos aspectos sejam negados com o decorrer do filme.
O filme aborda a cidade de São Petersburgo durante a passagem do ano de
1899 para 1900 a partir do romance de dois jovens, Alisa (Sonya Priss) e Matvey
(Fedor Fedotov), de classes sociais distintas. O plano de fundo é a Rússia czarista,
fator que colabora para o discurso revolucionário que permeia a trama, uma vez que
realidades distintas se apresentam no enredo, nesse caso, de maneira a fortificar o
melodrama.
O casal protagonista segue, portanto, uma linha que transita desde Romeu e Julieta, de William Shakespeare, passa por Aladdin, da Disney, e chega até Titanic, de James Cameron, isto é, todos os filmes aqui mencionados possuem em comum com Cidade de Gelo o amor impossível como motor narrativo, uma das características fundamentais para o melodrama dentro da esfera amorosa.
O filme se inicia com um plano sequência que apresenta inicialmente ao espectador uma padaria, onde o protagonista Matvey aparecerá pela primeira vez, o diretor opta, aqui, por uma contextualização de ambiente e de personagens que não é concretizada de maneira exitosa no restante do filme e, especialmente, em sua primeira metade. Um exemplo disso seria a cena que sucede o momento que Alisa é apresentada, uma cena de jantar onde a dinâmica plano/contraplano é executada sem nenhum apreço por uma decupagem clara, de forma que os planos, extremamente curtos, não apresentam nenhum ideal estético pois não há sentido dessa cena ser agitada.
No entanto, por mais que o filme apresente esses momentos apressados, é a partir da metade do filme, quando Matvey e Alisa se encontram majoritariamente juntos em cena, que a dinâmica melhora, contando inclusive com a presença de planos contemplativos, realizados para transpassar um ideal contrário àquela agitação presente no início do filme, focando mais em relações íntimas que por si só carregam uma carga dramática em decorrência à impossibilidade de realização amorosa.
Isso pode ser visto na sequência em que Matvey leva Alissa para conhecer a cidade, uma clara referência a Aladdin, onde por mais que os planos sejam majoritariamente curtos, há um espaço para um respiro, de forma que a composição de Claude Debussy, Clair de Lune, serve para intensificar esse momento.
Outro fator que chama a atenção no decorrer do filme e ainda mais ao final da obra, é a utilização da montagem paralela, de forma com que essa crie noções de apreensão. Um exemplo nítido dessa apreensão é a cena em que Matvey é reanimado após seu afogamento, enquanto Alisa, ao mesmo tempo, aceita casar-se com o homem proposto por seu pai. Percebe-se aqui uma excelente noção de direção de Lockshin, principalmente durante cenas de ação, que agem de maneira a acrescer dinamicidade e agilidade ao filme.
Nesse ponto, os planos de curta duração não se fazem incômodos, já que colaboram para a agitação necessária da própria cena. Tratando de aspectos formais que permeiam a obra, é interessante perceber e, voltando ao melodrama, como a própria forma do filme é denotadora do exagero presente em filmes essencialmente melodramáticos. Isto é, desde a primeira cena, na padaria, percebe-se o ar excessivo que rondará o filme, nessa cena em
específico, as cores chamam a atenção justamente por demonstrarem esse caráter fantasioso que se seguirá no filme. Através disso somos direcionados às cenas de
patinação, presentes durante todo o enredo, cenas que por si só possuem esse
atributo imaginativo, assim como os contos de fada.
Retomando esse último ponto, há alguns fatores na obra que servem como impulsionadores de uma noção fantástica e até idealista, e um desses seria o fato de os personagens brincarem com a ideia de os patins do protagonista, Matvey, serem mágicos, mesmo que de fato não sejam.
No que tange os personagens presentes na obra, temos aqui figuras propositalmente caricatas, que colaboram para uma certa polarização moral. O pai de Alisa é essencialmente mau e age de forma limitadora com a própria filha, já que nega a ela o direito de estudar, a livre escolha e até queima livros da protagonista (em uma cena que, novamente, nos remete aos desenhos animados). Desse modo, temos a madrasta de Alisa, que incentiva o pai a realizar certas maldades com a filha, Alisa.
Enquanto isso, e em uma posição oposta à desses personagens maus, temos os protagonistas, dotados de bondade de consciência social, Matvey é um rapaz revolucionário que rouba dos ricos, enquanto Alisa é estudiosa, possui vontade própria e contestadora de ideais retrógrados. Vemos aqui, portanto, uma dimensão característica bem limitada, sem espaço para ambiguidades, os personagens são, pois, ou inerentemente maus ou bons.
E é exatamente nessa perspectiva de polarização moral que o filme peca, e isso por conta de uma negação, ao final da obra, de todo um discurso levantado ao decorrer do longa, ou seja, a contestação de valores retrógrados, ao final do filme, é praticamente inexistente. Essa incoerência nos é apresentada quando o personagem do pai se torna milagrosamente bom e resolve procurar a filha, orgulhoso da professora que ela havia se tornado. Aqui, temos a negação do melodrama, visto que personagens essencialmente maus não deviam se tornar bons, o que acaba conduzindo o filme a um desfecho reacionários.
Nesse sentido, a mobilidade de classe vista como irrealizável na maior parte do filme, não é feita em um ideal de luta de classes, uma vez que a polarização moral, através dos
revolucionários amigos de Matvey, é quebrada, criando aspectos vilanescos em
torno deles. O aspecto reacionário então se repete, de forma que o diretor constrói
uma falsa ambiguidade e complexidade, que se aproxima de um discurso conformista.
Cidade de Gelo é, pois, um filme que se apropria muito bem dos aspectos
melodramáticos, comuns em clássicas animações, e faz isso de forma a utilizar
elementos formais a seu favor, uma vez que tanto a encenação quanto a montagem
servem para fomentar a dinamicidade de uma atmosfera fantástica.
Entretanto, conforme o longa vai se aproximando do final, o filme parece não acreditar nem em sua pureza fabulesca e, por consequência, nem no discurso voltado à luta de
classes, que é o cerne principal do próprio filme. Temos aqui, portanto, um final que
contradiz o filme por inteiro e acaba por evidenciar uma artificialidade dentro dos discursos anteriormente apresentados.
Ainda que o filme apresente tal contradição, o saldo ainda permanece positivo, uma vez que integra de forma exitosa elementos da fantasia em uma história que flerta, em partes, com o realismo. Como filme de estréia de Michael Lockshin, é perceptível que a utilização primorosa de fontes de inspiração, majoritariamente melodramáticas, servem para a concepção desse longa metragem de caráter histórico. Em Cidade de Gelo, os grandes feitos são aqueles que se entregam inteiramente ao melodrama, sendo isso seu maior êxito