Away (2020), produzida pela Netflix e escrita por Andrew Hinderaker, estreia em sua primeira temporada de 10 episódios. Com Hilary Swank como protagonista e grande estrela do numeroso elenco, Away acompanha uma astronauta americana num futuro próximo, a poucos momentos do lançamento da primeira missão tripulada para Marte.

Apesar do ambiente propício, não se engane: essa não é uma série de ficção científica, tendo a premissa da viagem especial como mero dispositivo dramático para o conflito familiar, que por sua vez escolhe jogar na chave do comedimento. A equipe espacial é liderada pela americana Emma Green (Swank), tendo sob sua responsabilidade outros quatro astronautas, totalizando a participação de cinco nações diferentes na ousada e inédita missão espacial. Seguimos então com os cinco aventureiros pelo sistema solar, e ficamos também com a vida terrestre de seus familiares, em especial marido e filha da comandante Green, que lidam com sua ausência e com seus próprios conflitos.

É interessante sentir como Away se aproveita, na relação com o espectador, do contexto social no qual nos vimos colocados apenas nos últimos meses. A comunicação por chamadas de vídeo e voz, assim como a influência real de Emma na vida de sua família desenvolvida à distância não soam como exagero dramático; e a ansiedade e stress causados pelo isolamento, a antecipação da linha de chegada, a morte que se apresenta como questão prática, todos esses sentimentos se beneficiam de um entendimento que até poucos meses atrás não estávamos, enquanto coletividade, acostumados, o que joga muito a favor da modulação mais lenta da ação dramática da série.

Essa modulação estabelece uma sutileza e interioridade em relação aos conflitos das personagens, o que pode ser frustrante para o espectador que anseia pela ação que geralmente acompanha o universo da viagem espacial, e reconfortante para quem busca esse tipo de andamento mais intimista.

Se considerado esse escopo, a série desenvolve bem os seus temas, e se aproveita do que essa área de manobra mais restrita proporciona: tudo fica mais achatado e próximo, e tanto os conflitos físicos (como os recorrentes problemas mecânicos na nave) quanto psicológicos (a ausência da mãe no amadurecimento da filha) parecem merecedores da atenção que recebem no roteiro.

Netflix Away: will there be a season two? | HELLO!
Por ter como premissa básica um foco absoluto nos seus personagens, a série acaba, paradoxalmente, por ignorar elementos determinantes que poderiam colaborar de uma maneira mais complexa na construção de suas personalidades.

Apesar da tripulação da nave ser diversa, fica latente ao longo da série uma visão estereotipada e antiquada em relação à constituição das suas personalidades – a chinesa Lu e o russo Misha são pesadamente definidos pela organização política dos seus respectivos países, enquanto o indiano Ram, o ganês naturalizado britânico Kwesi e a protagonista americana Emma parecem existir num vácuo político se colocados em relação aos outros dois. A certa altura, o fato de representarem suas nações chega a ser colocado como pólo oposto ao exercício de sua liberdade individual, e o discurso implícito desenha essa noção de coletividade como uma falha de caráter.

Desse mesmo modo, a religião e a fé também são apresentadas sob uma neutralidade que só se sustenta na superfície da narrativa, e que no fim das contas foge à problematização e a coloca como fator essencialmente positivo, novamente indicando uma recorrência a simplificações pré-concebidas que precocemente interrompem o aprofundamento dramático que esses elementos poderiam trazer à complexidade das personagens e da trama como um todo.

Ao fim, em seu primeiro arco de 10 episódios, Away é bem conduzida e bem modulada em relação às suas pretensões, que é algo próximo de uma sensação de desaceleração insólita e confortável.

A série não foge das dificuldades práticas do desenho narrativo que a própria viagem a Marte estabelece (a comunicação rarefeita, a progressiva desconexão entre os conflitos terrenos e espaciais), e apesar de sofrer com algumas simplificações em relação à constituição dessas personagens, a série combina bem a magnitude da empreitada espacial com um conflito psicológico incessante, distribuído entre seus personagens a partir de temas bastante amplos (resiliência, ansiedade, protagonismo, força de vontade, coletividade), usando a seu favor um sistema narrativo eficiente e bem articulado, astutamente enriquecido pela moderação de seus movimentos narrativos.

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Avaliação
Fotógrafo, documentarista e cinéfilo. Gosto dos filmes que me enganam. Varda, Kieślowski, Carpenter e Coutinho.
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