Por Ana Carolina Ferraz
“O tempo é o próprio tecido da vida humana”. Marc Bloch, um dos principais historiadores do mundo ocidental, marca o início de seu livro com esta frase para tentar exemplificar a relação do homem com o tempo. Em Aqui (2024), o diretor Robert Zemeckis volta a se preocupar com a relação do homem com o tempo, algo marcante em toda sua obra enquanto diretor. O filme estrelado pela já conhecida dupla Tom Hanks e Robin Wright, contam com apenas uma única câmara fixada, que nunca se move, apresentando recortes das vidas das diferentes pessoas que passaram por ali. Assim, a maior conexão entre os personagens passa a ser, então, o local que chamam de lar.
O diretor Robert Zemeckis, que anteriormente dirigiu Hanks e Wright em Forrest Gump: O contador de Histórias (1994), já brincava com a passagem do tempo e utilizava eventos históricos em segundo plano como um recurso narrativo para a vida de Forrest. Na obra prima mais aclamada do diretor, o público se depara com uma visão singular de Forrest diante dos grandes acontecimentos da humanidade. Desde correr por todo o país, sem propósito ou motivo algum, até correr para salvar todos os seus amigos durante a guerra do Vietnã, Forrest tem atitudes que, justamente por serem incompreendidas por muitos, desperta a ternura que cativou o público durante décadas, transformando o filme em um sucesso de público e crítica.
Em 1985, Zemeckis mergulha no fascínio do tempo e se debruça sobre o que é, talvez, o assunto mais fascinante que a ficção científica pode proporcionar. Em De Volta para o Futuro (1985), o diretor explora as premissas e as infinitas possibilidades da viagem no tempo, já evidenciando o fascínio de Zemeckis pelo assunto. Nele, o diretor brinca com o imaginário oitentista sobre o que deveríamos esperar em um futuro não tão distante. A trilogia De Volta para o Futuro hoje é considerada uma obra prima da ficção e angariou seu próprio nicho de fãs, torando-se um clássico cult do cinema. Afinal, quem não se frustrou ao chegar em 21 de outubro de 2015 sem nenhuma esperança de carros voadores ou, ao menos, de um skate voador?
No entanto, como afirmam os historiadores, toda obra de arte é um retrato de seu tempo e, sempre que falamos do passado ou do futuro, estamos falando, na verdade, sobre o presente. O novo filme de Zemeckis é também um fruto interessante do nosso tempo e se conecta com os nossos dilemas atuais. A nova obra do diretor só pode existir graças ao uso de Inteligência Artificial para rejuvenescer e envelhecer os atores. Zemeckis pode então brincar com a aparência de um Tom Hanks em Quero Ser Grande (1988), enquanto trabalhava com toda a maturidade e talento do ator que já se consagrou em dois Oscars.
O diretor também precisou lidar com os dilemas éticos e morais que envolvem o impacto das IAs para as produções artísticas, assunto que tem sido fervorosamente debatido entre os criadores de conteúdo e até levou a uma greve dos roteiristas em 2023.
Repetindo alguns recursos marcantes de Forrest Gump, essa passagem de tempo por hora é óbvia, como a aparição de dinossauros e o congelamento da terra no início do filme e por hora, se mistura de forma leve à narrativa através do cenário, das roupas, das notícias na televisão, das constantes reclamações do personagem de Hanks sobre a economia do país, das fantasias caricaturadas e bastante datadas na festa de Halloween, dos personagens utilizando máscaras e evitando toques durante a Covid-19.
Ainda, a trama se estende para um período além da vida dos personagens principais, demonstrando que, pela primeira vez, desde a pré-História, aquela casa pode ser ocupada por uma família negra, marcando fortemente o racismo que ainda sofrem, mesmo ocupando um novo espaço na sociedade. Na trama, assim como na vida real, as famílias retratadas em outros séculos perderam seus familiares e amigos para a gripe espanhola ou guerras e essa família enfrentou essa perda durante a pandemia do Covid-19, o que destaca a pandemia como um dos eventos históricos mais catastróficos dos nossos tempos.
Nesta obra, o diretor mais uma vez acertou em trazer algumas reflexões filosóficas e profundamente pessoais. Se em Forrest Gump (1994) conseguimos acompanhar a alegria e leveza, até mesmo desconcertante, com a qual Forrest enfrentou os dilemas da sua vida, em Aqui (2024), acompanhamos o peso que é para os personagens principais abrirem mão dos seus sonhos para cuidar do cotidiano de criar uma família.
Se em De Volta para o Futuro (1985), o que nos fascinava era imaginar como a tecnologia iria avançar, o que poderíamos criar de inovador e o que de fantástico o futuro poderia proporcionar para nossas vidas, em Aqui (2024), o que se faz necessário é refletir sobre as formas éticas da tecnologia, sobre o distanciamento da humanidade gerado pelo abuso tecnológico, sobre o impacto que as redes sociais e as mídias tem nas próprias criações artísticas, sobre como, apesar de todos os avanços tecnológicos que tivemos, os avanços sociais foram infinitamente menores do que deveriam e estes sim, são os principais problemas com os quais a humanidade precisa lidar.
Complementando o pensamento de Marc Bloch “(…) o historiador, como o poeta, não pode desdenhar o tempo; o primeiro busca compreendê-lo, o segundo busca expressá-lo”. Assim, como um poeta, Zemeckis tenta resgatar um elemento essencial para conectar todos os diversos personagens que passaram por aquele pequeno espaço em um breve momento no tempo: dentre tudo que vivemos, como a personagem de Robin Wright, o amor que sentimos será a única coisa que iremos nos lembrar.
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