Reflexões sobre Desigualdade Social, Desconexão e Gastronomia


Por Ingrid Machado

Nos dias atuais, as mudanças geopolíticas ocorrem em um ritmo acelerado, enquanto a desigualdade social se torna um assunto popular e impossível de ser ignorado nas metrópoles ao redor do mundo. Diante desse contexto, filmes que satirizam a burguesia e suas extravagâncias surgem como poderosas ferramentas para expor as contradições desse grupo social privilegiado. Por exemplo, “Triângulo da Tristeza” (2022) do sueco Ruben Östlund e “Daisies – As Pequenas Margaridas” (1966) da diretora tcheca Věra Chytilová, que retratam de maneiras distintas a relação da burguesia com a comida e a gastronomia, entre outras coisas.

Ao explorar a abundância de alimentos, esses filmes revelam como a burguesia vive em um mundo de opulência e excesso. As cenas dos banquetes suntuosos, onde alimentos finos e requintados, são servidos em quantidade exagerada ou em porções muito pequenas.

É Interessante notar como a representação da relação da burguesia com a gastronomia tem evoluído ao longo do tempo. Se, no passado víamos banquetes extravagantes e fartura desmedida, observamos na contemporaneidade uma mudança de paradigma.

A tendência atual é valorizar a elegância e a sofisticação, ainda que  porções menores. O foco está na apresentação cuidadosa dos pratos e no refinamento da experiência gastronômica, em detrimento da pura ostentação.

Essa mudança reflete não apenas uma adaptação às novas sensibilidades estéticas, mas como uma forma dos membros da burguesia preservarem sua posição social sem parecerem excessivamente indulgentes em tempos de crescente desigualdade. A redução das porções pode ser interpretada como uma maneira mais “aceitável” de desfrutar a gastronomia refinada, ao passo que a ostentação excessiva seria malvista em uma sociedade mais consciente das disparidades socioeconômicas.

Os dois filmes retratam representações visuais impactantes. Essas imagens simbolizam a riqueza e poder desse grupo social, ao mesmo tempo em que evidenciam sua desconexão com a realidade. Em Triângulo da Tristeza, como exemplo, somos confrontados com a exuberância gastronômica que permeia a vida dos personagens com o anúncio do jantar com o capitão, que come outro tipo de comida, um fast-food bem servido, enquanto os tripulantes requintados provam do jantar fino servido em pequeníssimas porções. O capitão se alimenta com uma porção generosa de batatas fritas e hamburguer, uma opção mais calórica e menos saudável,  porém mais bem servida.

Com o navio prestes a afundar e as pessoas passando terrivelmente mal com a comida e o balanço do mar, elas continuam ignorando a realidade daquele jantar e tentam manter a postura até o limite.

A alienação é levada ao extremo nessa cena. Através dos diálogos e sequências, o filme explora a ostentação e o hedonismo presentes durante as refeições e nos momentos de convívio social. A gastronomia torna-se não apenas um símbolo de status, mas uma forma de afirmação e prazer para esses personagens.

Já em “Daisies – As Pequenas Margaridas”, a farsa é construída de maneira mais subversiva e irreverente. O filme retrata duas jovens mulheres que, entediadas com a monotonia de suas vidas, decidem se entregar a uma vida de excessos e transgressões.

É num campo num dia ensolarado que elas renascem e vão em direção à uma macieira e provam do fruto proibido, dando início ao seu renascimento na sociedade de excessos. Em meio a brincadeiras e destruição, elas também desafiam as convenções sociais por meio da comida.

Analisaremos pela ótica da arqueologia gastronômica, convidando para a conversa o Eça de Queiros, e observarmos o que comem: comidas de excelência gastronômicas, como comem: impacientemente devorando tudo que for possível, às vezes com afobação como Saavedra de Primo Basílio no banquete de rapazes, outras vezes de forma meticulosa e metódica.

Com quem comem: com homens aristocratas interessados em mulheres muito mais novas que eles, com exceção das cenas finais. Durante esses jantares, elas debocham da objetificação e sexualização desses corpos femininos enquanto comem para depois descartar esses homens no próximo trem.

Mas é na parte final de” As Pequenas Margaridas” que vemos as personagens principais entrarem num elevador de comida no porão de um edifício e subir até o último andar. Chegando ao topo, como se elas estivessem subido ao topo da cadeia alimentar onde um banquete está preparado. E finalmente elas se sentam a mesa, como donas da festa, e comem do bom e do melhor.

Bebem whiskey americano numa Checoslováquia que passou por quase duas décadas de repressão do regime comunista, desfilam sobre a mesa, pisam sobre frangos assados, bifes de carne vermelha. Aqui elas comem tanto quanto desperdiçam propositalmente em excessos.

Apesar de ter sido recebido positivamente pelo público, As Pequenas Margaridas foi censurado até 1968 quando foi possível assistir ao filme nos cinemas de novo, mas logo foi censurado novamente durante a invasão soviética. O motivo dado para justificar a censura foi o desperdício de comida durante uma época em que os agricultores lutavam com a produção agrícola no país, segundo os parlamentares.

Mas a questão seria a potencialidade desses comentários sociais em forma de sátira das classes abastadas. A hierarquia social no cruzeiro em “Triângulo da Tristeza” acaba quando o navio afunda e eles ficam presos numa ilha em que para sobreviver a sua beleza e o seu status econômico e social não servem mais como moeda de troca.

A princípio essa elite já está socialmente isolada da sociedade em sua própria bolha, mas decidem se isolar ainda mais num cruzeiro luxuoso por escolha e acabam isolados e perdidos numa ilha por acidente. Na ilha, a vida da socialite depende de Abigail, a filipina gerente de banheiro do cruzeiro. Temos aqui um deslocamento de poder.

Se antes os mais ricos dependiam da falta de ascensão da classe trabalhadora, agora esses mais ricos dependem da classe trabalhadora, representada por Abigail, para sobreviver e ter de comer. Uma reviravolta potente que poderia ter dado início a melhor parte do filme. Infelizmente a crítica e ironia se esvazia e o roteiro degringola se arrastando até o final do filme com muito esforço.

Já em Daisies, as duas mulheres são invisíveis à classe trabalhadora, elas não existem porque elas não são parte da força de trabalho. E trabalho é o que faz essa classe trabalhadora existir, o que valida a sua existência e traz  significado a ela. Então as personagens decidem voltar à cena do banquete, em completa destruição, e arrumar o salão e a mesa juntando os cacos do que sobrou enquanto repetem mantras como “se nos comportarmos bem e trabalharmos duro, seremos felizes e tudo ficará ótimo”, rendendo seus corpos à redução de só servir como instrumento de trabalho.

Por fim, se deitam na mesa em completa infelicidade e inércia, repetindo o quanto estão felizes. No entanto o trabalho não trouxe nenhuma felicidade, mas uma falsa ideia dela até que elas, sugestivamente, morrem.

O filme então encerra com uma dedicação “esse filme se dedica às pessoas que só se incomodam com uma bagatela pisoteada”, ressaltando a falta de empatia e alienação da elite e políticos com a guerra e que existem problemas maiores para se incomodarem do que uma alface pisoteada, fazendo alusão ao motivo dado pelos censuradores.

Em suma, filmes como “Triângulo da Tristeza” e “Daisies” são exemplos marcantes de como a sátira cinematográfica pode revelar os excessos e as contradições da burguesia. Através da representação da abundância de alimentos e da relação da burguesia com a gastronomia, essas obras nos convidam a refletir sobre a desigualdade social e a desconexão dos privilegiados em relação à realidade da maioria.

Ao explorar essa temática, a sátira audiovisual desempenha um papel importante ao desafiar os valores e as normas estabelecidas, nos convidando a repensar as estruturas sociais e abrir espaços para o debate sobre essas estruturas e equidade.

 

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Formada em Cinema com especialização em direção e roteiro. Minha jornada cinematográfica inclui a direção de curtas e roteiros que me proporcionaram alguns festivais. Atualmente, estou empenhada no desenvolvimento de dois projetos de longa-metragem, um deles é um documentário sobre memória social, e o outro uma ficção.