Eu estava assistindo a alguns vídeos no youtube de uma criadora de conteúdo famosa e de um rapaz nem tão conhecido assim. Ambos falavam sobre a nouvelle vague.

Em certo momento, a criadora de conteúdo diz que “a nouvelle vague criou o conceito de diretor autor […] ele foi importante para você prestar atenção na figura do diretor”. O rapaz afirma: “diferente do pensamento atual, a figura do autor no cinema nem sempre foi o diretor  e obedecendo a uma tradição literária, o autor de um filme era considerado um roteirista ou argumentista sendo do diretor o papel de colaborar com quem escrevia um filme’’.

Ambos argumentos visam informar que o famoso movimento francês (a Nouvelle Vague) criou a ideia de colocar na figura do diretor a imagem do autor ou principal nome de um filme. Mas eu gostaria de mostrar exatamente o contrário, porque os debates e comentários que destacam o papel do diretor são muito mais antigos do que pensamos.


A CRÍTICA JÁ FAZIA ISSO


Dilys Powell (1901 – 1995) foi um dos principais críticos britânicos na década de 1930 e 1940. Ele escrevia sobre John Ford, Jean Renoir e outros ao defender que grandes obras eram feitas por grandes artistas. Mas foi em em 1946 que Powell fez uma retórica mais refinada sobre esses nomes, afirmando que sim em seguida:

 “How can one man leave the mark of his personality and his talent on this hugger-mugger?” (“Como pode um homem deixar a marca de sua personalidade e seu talento neste assaltante?”)

Essa citação pode ser conferida em The Dilys Powell Film Reader (página 37).

Nos Estados Unidos, James Agee (1909-1955) possuía uma linha similar ao analisar a obra de um diretor como um todo. Ele foi importante para a história do cinema, como reafirma o pesquisador David Bordwell, por levar os filmes a sério e defender que podiam ser ótimos mesmo que a maioria dos que não estivesse à altura de seus padrões exigentes da época. Agee foi o primeiro crítico americano a comparar diretores a outros artistas de renome. Seus textos igualavam Preston Sturges a Charles Dickens, de Carl Theodor Dreyer a Beethoven e D. W. Griffith a Walt Whitman.

Ele enxergava os diretores como principal mente criativa por trás dos filmes. Entusiasta de John Huston, escreveu um artigo intitulado “Undirectable Director”, onde argumentou de forma contundente sobre o trabalho estético do cineasta:

“Much that is best in Huston’s work comes of his sense of what is natural to the eye and his delicate, simple feeling for space relationships: his camera huddles close to those who huddle to talk, leans back a proportionate distance, relaxing, if they talk casually.“  

(“Muito do que é melhor no trabalho de Huston vem de seu senso do que é natural para o olho e seu delicado e simples sentimento de relações espaciais: sua câmera se amontoa perto daqueles que se amontoam para falar, se inclina para trás uma distância proporcional, relaxando, se eles falam casualmente.“)

Exaltar o nome do diretor como uma figura famosa e de renome não era algo novo porque a indústria sempre precisou captar a atenção do público para os nomes de relevância da época, mesmo com a existência da imagem de um produtor poderoso que ditava as regras da produção.


E ISSO JÁ ESTAVA PRESENTE DESDE OS PRIMÓRDIOS DO CINEMA.


A Rosa Branca (The White Rose, 1923), foi divulgada no New York Times como “D.W. Griffith’s latest film” (o último filme de DW Griffith). Foi uma forma de vender o nome do diretor como promoção do filme e isso só poderia ter sido feito uma vez existia um culto sob o nome e posição do realizador.

Ao olhar para o cartaz de Intolerância (1916), abaixo, notamos a mensagem que remete ao espectador que a obra era feita pelo mesmo criador de O Nascimento de Uma Nação (1915).

Intolerância (1916)

É válido lembrar que Griffith foi durante muito tempo (e de forma equivocada) conhecido por ser o “pioneiro do cinema narrativo”. Essa ideia reforça o olhar que o diretor possui como figura criativa central. Griffith não inventou nada mas entendia que a própria posição era vantajosa frente à indústria americana.

Até mesmo quando existia um grande nome por trás, a figura do diretor recebia maior atenção. Ben Hur é um livro mundialmente famoso escrito por Lew Wallace. A adaptação de 1925 trouxe consigo nomes famosos do cinema na época, tal como Ramon Navarro. O ator foi uma das principais referências de bilheteria na década de 1920 até o início de 1930 e era visto enquanto rival de Rodolfo Valentino (a grande estrela da época). Ao olhar para o cartaz do filme abaixo, perceberemos que o primeiro nome a receber destaque é do diretor Fred Niblo, que não escreveu o filme.

Ben-Hur: A Tale of the Christ (1925)

 

E NÃO FOI SOMENTE EM HOLLYWOOD

Na Inglaterra os cartazes enfatizavam o nome de Alfred Hitchcock, na Suécia apresentavam o nome de Victor Sjöström e tantos outros que poderiam ser citados. Os cartazes de divulgação tratavam a figura desses artistas como pessoas de importância.
Esses nomes só poderiam ser focados porque existiu algum culto, referência ou clamor na época. Se qualquer outra figura da época de maior renome estivesse na produção, essas personalidades viriam em destaque. Observe abaixo o primeiro cartaz de O Águia (1925) que, diferente de Ben Hur (também de 1925), foca no famoso ator Rudolph Valentino.

The Eagle (1925)
The Eagle (1925)


O movimento trouxe um conjunto maior de nomes para discussão e releitura (seja nas grandes produções ou nos filmes b). Antes, os artistas que possuíam respeito perante a crítica eram um grupo seleto e de certa forma repetido. Com a Nouvelle Vague, figuras como Alfred Hitchcock e Robert Siodmak passaram a ser vistos de outra forma.

Sendo assim, o advento da Nouvelle Vague não criou nenhuma novidade em colocar o diretor como figura de maior importância em uma produção. Pois já existiam críticos que olhavam para essas posições e o enxergavam como artistas. E nem vistos como meros contribuidores dos roteiristas, uma vez que alguns estavam à frente dos cartazes de divulgação das obras.

Seja em Hollywood, onde a figura do produtor ditava as regras ou na Europa, onde existia mais liberdade, glamour e respeito ao nome de alguns diretores. Mas não podemos nos esquecer, como diria o cineasta Victor Hugo Berenger, que cinema é uma arte coletiva.

Scorsese seria o mestre que é sem a contribuição da Thelma Schoonmaker?

Tarantino teria decolado tão rápido sem Sally Menke ?

Sergio Leone seria elogiado sem Clint Eastwood?

 

Fontes:
A story about stories by Bosley Crowther: https://nyti.ms/3JPiCgU
About James Agee: https://bit.ly/3iXgxE1
The Many Sides of James Agee: https://bit.ly/3tIUjvB
On the history of auteurs: https://bit.ly/36T9VmY
The Dilys Powell Film Reader

 

 

 

Estudou cinema na escola Cinema Nosso e é formado em Estudos de Mídia. Roteirista, futuro diretor e colecionar de HQ. É editor chefe do Canal Claquete. Odeia arrogância no cinema.